No riacho caudaloso, nas marés neurológicas, as mãos são, das ferramentas corporais, as maiores provocadoras de neurônios, de rastilhos sinápticos, rainhas do fluxo inteligencial.
As crianças que perscrutam as fixações, os cortes e as afiações, têm suas mãos cheias de cicatrizes. Cicatrizes nas mãos superam de longe qualquer outra cicatriz corporal. São marcas, vitórias incalculáveis para culminâncias perceptivas. Percepção e mãos são coisas que se maturam juntas.
Perceber e valorar devem ser junturas em desenvolvimento. São coisas gêmeas na medida em que perceber é - de um certo modo errante - forma de clivar, fragmentar, antagonizar a linearidade dogmática do nosso ego. Um modo de sobressaltar - para a maturação - uma tendência à inocência de nossa propriocepção. Um modo de dar sentidos genuínos, com valor, àquilo que força-se para o sono constante. E, portanto, aos poucos precisa ser despertado.
As crianças num mundo pedagógico higiênico tem desenvolvido uma propriocepção sonâmbula em relação à provocação do espaço e à temporalização veloz. Crianças de dez anos de idade estão perdendo a capacidade de dar bons nós, nós firmes dados pelas mãos, os dentes e os dedos de apoio. Nós que afirmam os momentos decisivos e necessários do aperto. Aqueles nós tensos que firmam a borracha no cabo da estilingue. Aqueles nós cegos que garantem a ligadura dos mastros aéreos das pipas. Nós arrochados que seguram uma estaca de cumieira na casinha no quintal.
Raro é ver uma criança de sete, oito anos de idade com um corte fundo num dedo, com a marca de uma martelada na unha, com a inflamação de um espinho encravado. Onde andam as faquinhas? Onde andam os giletes? Quem escondeu os pregos? Cadê os alicates e martelos? Roubaram as pedras de amolar?
Adam conspirando para criar um exército de gente mal dormida? Estão conseguindo! Gente sem infância e juventude, ou seja, sem desejo de subversão. Adam armando pra cima das crianças! Não as querem autônomas. Não as querem imaginadores! Não existem mais oficinas para desmanchar o mundo? Que coisa horrorosa! Tem que ter gente com estatura de grito, que saiba fremir com força! Para gritar com força é preciso saber usar as mãos. Pegar o mundo com as mãos. Pegar as coisas com o senso do si mesmo. Tomar conta de si.
O que mais tem é escolas por aí e redes de educação que dizem fazer tudo pela liberdade e expressão das crianças, aquela coisa café com leite e pronta de que “valorizam o brincar livre”. Assunto boca mole. Quando encontro com essas crianças desses ambientes cheios de falatórios, e vamos fazer coisas juntos, coisas de amarrar, pregar, cortar, colar, esticar, juntar, suspender, ralar, lixar, aí a gente vê NA LATA, NO FLAGRA, a falácia dos discursos muito bem vendidos para famílias sonâmbulas e incautas. Discursos midiáticos intoxicados da tal eficácia, mas que não mostram nada de verdade no que interessa: o corpo das crianças.
Meninas e meninos de ensino fundamental esquálidos de criação, macilentos, entupidos de conceitos na mesma proporção que desprovidos de mãos hábeis. Conceitos sem uso das mãos são como gases angustiados para fugir da constrição tripal. As mãos são as parturientes das capacidades conceituais, das forças imaginativas, da extensão abstrativa. Elas, as mãos, são o tear da vida conceitual no tecido corpóreo. Do corpo nasce a verdadeira vida pensamental. As mãos são as mães das virtudes de simbolização. As mãos são as mentoras de toda filosofia estética, da razão do gosto, do enlace com a beleza.
Se deixarmos as crianças entre muitos artefatos perceberemos como elas os utilizam incessantemente, os exploram, os convidam a realizar o jogo democrático de fazer coisas no mundo. ARTEFATOS E DEMOCRACIA. Perceberemos como elas se deixam ensinar por esses extensores de habilidade e força.
Mas talvez, sejamos também capazes de perceber, com mais nitidez, como elas nos solicitam para que as iniciemos nessas técnicas, nos usos dos artefatos. Mais ainda, conseguiremos enxergar o quanto é necessário que nós educadores saibamos usar esses instrumentos e, fundamentalmente, os usemos para trabalhar diante das crianças. Só de ver nossos afazeres, elas já capturam a essência do uso, ou melhor elas já capturam o conceito, o filosofema do fazer. Artefatos são guardadores de gestual. Tocá-los é acionar um vasto campo de gestos em direção aos materiais. Em direção ao desafio do mundo.
Para essa sociedade do medo e da financeirização, uma reflexão como essa já induz a perguntas irrefletidas, perguntas sem fim, sobre o risco, sobre o que usar com as crianças, sobre o preparo e organização dessas coisas para a segurança. Já surgem os ávidos vendedores e vendedoras de ideias e modos de fazer, já surgem os comerciantes de novidades pedagógicas para a sala de aula. Surgem tais questões superficiais, pois a geração atual de educadores, gestores de educação e pesquisadores da área também não usou as mãos, pouco conheceu materiais, pouco fez brinquedos.
Uma cultura pedagógica da matéria é urgente! Só assim vamos parar de ver postagens e mais postagens de crianças com mãos e pés sujos de barro como se isso fosse uma grande vitória. ISSO É NADA diante da tarefa de tirar os corpos de nós educadores do sonífero, da inconsciência em que nossa geração foi constituída. Aí teremos vergonha de publicizar crianças como se fosse propaganda de margarina. Pois quem conheceu e viveu a construção de crianças fazendo brinquedos de lata, pau, fibras, e tantos restos, sabe o quanto a matéria instrui as mãos e o quanto as mãos instruem a alma.
Que frase potente! Do corpo nasce a verdadeira vida pensamental. Com certeza essa frase fará parte da devolutiva dos relatórios individuais e dos semanários, quando não houver concordâncias com a argumentação citada. Somente para reflexão, E que refexão11111111